No meu primeiro dia de aulas, acordei, chorei, tomei banho, chorei, liguei para a minha mãe, chorei e fui para a universidade a pé. Não era uma caminhada longa mas a estrada era inclinada. Eu estava cheia de medo do que iria encontrar na minha turma nova. Será que eu ia conseguir acompanhar as aulas em Inglês? Será que eu seria a única aluna estrangeira? E se eu fosse a menos talentosa? Afinal de contas, numa turma cheia de futuros Arquitectos de certeza que todos teriam tido aulas de desenho e geometria na escola e eu só tinha tido aulas de biologia, física e matemática.
Finalmente, cheguei à universidade e me dirigi para a sala de aula. Era uma daquelas salas que tinham as cadeiras inclinadas como um auditório. As paredes tinham um acabamento de madeira. Tinha tudo um ar sério e antigo como se gerações e gerações de Arquitectos tivessem passado por ali. Eu tinha medo de falar ou de me mexer muito. Queria ser invisível para não causar incómodo à aura que aquela sala tinha. Embora estivesse paralisada com medo, sentia um senso de porpósito como se estivesse a embarcar numa grande aventura e a iniciar uma carreira espectacular. Sentia como se ninguém pudesse me parar. Ao longo da aula, vários professores se levantaram para falar connosco e nos informar que durante os próximos três anos não iriamos dormir, ter vida social, ser felizes e ainda nos informaram que uma boa parte de nós iria desistir antes do segundo ano e outra parte não iria chegar ao mestrado. No fim da aula todo aquele senso de propósito tinha desaparecido. Estava deprimida, derrorada e não conhecia niguém. E para piorar as coisas não fazia ideia de onde a próxima aula era. Engoli as minhas lágrimas e fui perguntar a menina barulhenta à minha trás se sabia onde a próxima aula era. Os olhos dela se abriram e ela explodiu: “your accent! You are Portuguese!!!!”. Óptimo, pensei eu, estou deprimida e agora pelos vistos falo tão mal Inglês que pessoas até abrem os olhos como se eu fosse um fantasma. Mais tarde, descobri que os pais dela nasceram em Portugal e ela sempre quis aprender a falar bem Português mas não tinha com quem falar. Ela me informou que iríamos ser amigas eu pensei para mim “hmmm não quero fãs que me obriguem a falar Português de 5 em 5 minutos”. Agora passaram-se oito anos e ela é uma das minhas melhores amigas. Foi a partir desse momento que comecei a enquadrar-me em Johannesburg. Ainda chorava todas as manhãs e ligava para a minha mãe pelo menos 3 vezes por dia, mas comecei a fazer amigos e aos poucos fiquei mais independente. A minha mãe ficou cansada de receber chamadas minhas e me comprou uma televisão para ver se eu tinha entretenimento. Infelizmente não funcionou.
Sei meses depois mudei de acomodação e entrei para uma das melhores reses na Wits, na minha opinião. Chama-se Wits Junction. A partir do momento em que comecei a viver lá tudo melhorou. Fiz mais amigos, ia para a universidade de machibombo com os meus novos amigos e tinha companhia na hora do almoço. Estava tudo a tornar-se ligeiramente mais fácil. As chamadas para a minha mãe começaram a diminuir e os choros começaram a tornar-se cada vez mais curtos. Estava tudo a correr bem até que aconteceram dois incidentes.
O primeiro: fui a loja de material escolar comprar um caderno. Passei o cartão na maquina e não consegui fazer o pagamento. Passei de novo e mais uma vez o cartão foi rejeitado. Passei a terceira vez e quando tentei passar a quarta vez, a senhora do balcão muito irritada me mandou ir à ATM ver se tinha dinheiro. O meu cérebro entrou num mini choque. Eu pensei “ver se tenho dinheiro no cartão? Claro que tenho. Devo ter de certeza não é? Só comprei comida e material escolar!!!!”. Lá fui à ATM em pânico. Nunca tinha usado uma ATM antes e agora tinha que ir lá ver se estava falida. E infelizmente foi mesmo esse o caso. Entrei em pânico. Estava toda sozinha em Johannesburg e agora nem tinha dinheiro para comprar um caderninho. Quando os meus irmãos estavam na universidade pareciam sempre ter baldes infinitos de dinheiro. Como é que eu estava falida? Isto não fazia parte daquela fantasia que eu tinha tido antes de começar a universidade. Liguei para a minha irmã a chorar e foi-me dado o primeiro conselho de adulta desde que tinha começado a universidade. Ela me disse para eu ter um caderninho onde escrevia tudo o que comprava ao longo de um mês e os preços tanto para ter uma ideia de onde o meu dinheiro estava a ir e para poder saber quanto dinheiro precisava para viver minimamente confortavelmente. Isto é algo que até agora aos 26 anos ainda faço e sou imensamente grata ao conselho que a minha irmã me deu. Antes de passar ao segundo incidente, gostaria só de dizer em minha defesa que quando eu me mudei para Johannesburg a única instrução que recebi foi “anda com pepper spray”. Infelizmente não recebi nenhuma instrução no que dizia respeito a finanças ou como sobreviver a minha nova vida como adulta. Agora sei o quão ridículo é, mas na altura nem me passou pela cabeça controlar o valor na minha conta do banco ou que um dia o dinheirinho poderia acabar. Depois deste incidente nunca mais acabei o meu dinheiro. Foi uma lição bem aprendida.
Agora podemos passar ao segundo incidente que trouxe todas as lágrimas de volta duma só vez. Um belo dia, eu atrasei-me para a aula das 8 da manhã. Quando os professores disseram que não íamos mais dormir não estavam a brincar. Estava eu bêbada de sono, atrasada para a aula e a correr carregada de papéis ao mesmo tempo que mandava um whatsapp para a minha amiga para saber se a aula já tinha começado quando de repente senti que estava a voar. Será que estava com tanto sono que estava a alucinar? Antes de conseguir perceber o que estava a acontecer senti uma dor horrível e reparei que o chão estava mais perto da minha cara do que devia estar. Pois, tinha voado das escadas abaixo e aterrei com o rabo no chão. Esse foi o primeiro dia em que aprendi que em Johannesburg as pessoas não se ajudam como em Maputo. As pessoas continuaram a andar à minha volta como se nada tivesse acontecido enquanto eu tentava calçar a minha sandália que tinha aterrado fora do meu pé. E para piorar a situação, quando me levantei vi que havia uma fila enorme de pessoas há uns metros de mim. Tinha dado um espetáculo magnífico a umas 100 pessoas. Decidi levantar a cabeça como se nada tivesse acontecido e continuar a andar para a aula com o mínimo de dignidade possível.
Quando a aula acabou fomos todos para o machibombo e fomos a uma visita de estudo. No caminho comecei a sentir uma dor leve no tornozelo mas decidi ignorar. De certeza que depois daquela queda era normal sentir um pouco de dor. Não poderia ter estado mais enganada. No meio da visita de estudo estava a coxear e a gemer de dor. E daí a situação só piorou. No fim da visita todos foram para o machibombo rapidamente e se sentaram a assistir o espetáculo que era eu a arrastar-me para o machibombo com a minha amiga a tentar ajudar-me a andar. Estava a transpirar não de dor nem de esforço mas de pura vergonha enquanto tentava segurar lágrimas. Finalmente, cheguei no machibombo e dali fui directo à sala de emergência. Passei as duas semanas seguintes de moletas e a sentir-me vulnerável. Não conseguia carregar os meus projectos sozinha, subir no machibombo era uma comédia e sempre que começava a andar só se ouviam os “clap clap clap” que as moletas faziam quando batiam no chão. O que eu não percebi na altura foi que fiz muitos amigos. Havia sempre alguém da minha turma que se oferecia para carregar a minha mochila, os meus desenhos ou até a mim. Esse foi o último teste que tive e depois disso as coisas se tornaram mais fáceis. Não digo que não houveram obstáculos, mas já me sentia forte para os enfrentar.
E assim se foram os três anos de bachelerato. Há muitas historias que poderia contar, como por exemplo as histórias de fees must fall, histórias de ter que fazer projectos em lugares em que as pessoas carregavam armas como se fossem telefones e até historias de sermos ameaçados por gangs em visitas de estudo. Sim – isso tudo aconteceu mesmo. Mas por agora vou parar aqui talvez vos conte mais no próximo blog.
